Nesse texto
que agora escrevo, emocionado e indignado, quero comentar sobre o assassinato a
sangue frio protagonizado pelo empresário René da
Silva Nogueira Junior que fez do Gari Laudemir de Souza Fernandes apenas
mais uma vítima do modelo social que o condenou é claro, mas com um símbolo
bastante emblemático sobre a dicotomia social sob a qual somos
fadados a existir: por um lado, o grupo dos que reivindicam o direito de ser iguais,
de ser dignos e de viver; e do outro, o grupo dos que reivindicam o direito de
ser superior, de escravizar e de matar, sempre em prejuízo do primeiro grupo.
Quero começar
a reflexão partindo de duas frases da canção do MC Bob Rum, “Era só mais um Silva que a estrela não brilha...
ele era funkeiro, mas era pai de família” as quais quero reescrever assim: “Era
só mais um trabalhador que a estrela não brilha, ele era Gari, mas era pai
de família”. Na música, o personagem
sai em apenas mais um domingo de sol, de manhã, pra jogar seu futebol; leva uma rosa pra irmã,
dá um beijo nas crianças, promete não demorar e fala pra sua esposa que
iria vir pra almoçar. Talvez bem parecido com o caso de Laudemir, pois
era pra ser apenas mais uma segunda-feira, de manhã, em sua vida e rotina de
trabalho, e me atrevo a imaginar que pelo menos algumas das ações na letra da
canção, num contexto familiar, devem ter acontecido, pois, sua esposa e sua
filha certamente esperavam vê-lo voltar do trabalho vivo naquele dia.
Trago esse panorama para trazer o
foco para nosso modelo cultural que sutilmente validamos todos os dias e todos
os dias o tornamos mais cruel e desumano no qual existem os que nasceram
vencedores e os que nasceram perdedores... os que são vencedores e os que são
perdedores e aqueles que vencem e os que perdem. Infelizmente, nessa dualidade
desse modelo social, muitos perdem também a vida.
Nossa sociedade está cheia de casos
de Laudemir, um rosto sofrido, um corpo franzino, uma profissão socialmente sem
prestígio e uma condição social originária de ser preto, pobre e periférico. Também
a sociedade está cheia de René, empresário,
bem-sucedido, bem-casado, bonito, corpo malhado e branco, sem esquecer que ele
mesmo se define como marido, pai, patriota e, pasmem... cristão.
Este caso e estes dois homens revelam
de forma muito emblemática a dualidade social e o condicionamento dos modelos
que validamos, pois muitos querem ser o René, muitos querem ter sua beleza, seu
corpo, e seu espaço social, pois a imagem dele representa um exemplar daquilo
que consideramos “ser alguém na vida”, ser um vencedor, mas pior ainda, ser alguém
superior. Por outro lado, olhando para a imagem do Laudemir, o que esse mesmo
modelo social nos obriga a ver é a imagem do zé ninguém, do perdedor, e o que é
pior ainda, de alguém inferior. Ninguém tem o Laudemir
como uma meta de vida ou como um modelo de sucesso, pois para nosso padrão
social, o René representa alguém muito importante e o Laudemir alguém sem importância
nenhuma... o fatídico dilema do CEO empresário e o Gari.
Após essa tragédia foi possível o Brasil
conhecer não apenas o motivo fútil e sem razão que levou René a assassinar
Laudemir, mas também a extensa ficha criminal dele que vai de agressões
domésticas contra ex-mulheres a atropelamentos, crimes ainda impunes. Por esses
fatos, é necessário afirmar que as contradições das duas imagens desses dois
homens devem ganhar um justo significado, pois se retiramos René da sociedade,
teremos uma sociedade mais segura, ou seja, ele não fará falta. Mas se
retiramos o Laudemir e a categoria de profissionais a que ele pertencia, o que
será da sociedade? Olha o colapso que não seria. Por isso, Laudemir, apesar de
não ter a graça do modelo dominante, tinha na sua profissão, um relevante
serviço social.
O ato de René e o contexto em que
ele matou Laudemir escancaram a triste saga social do superior e o inferior. Certamente
para René ele estava atirando em um saco de lixo como algo tão insignificante
que lhe permitiu, minutos depois, sair com seus cachorros e malhar numa
academia porque ele se sente superior e o ser inferior lhe estava atrapalhando.
Se formos considerar René que esbanja a imagem de um homem bem-sucedido, é
relevante perguntar: que motivos ele tinha para ter ficando tão alterado e não
poder esperar alguns instantes enquanto aquele grupo de honrados trabalhadores
fazia a limpeza pública? Problemas mentais? Emocionais? Ou de caráter? ... não
parece um caráter forjado nesse modelo social em que o vencedor não pode ser
confrontado pelo perdedor?
A atitude de René não é um caso
isolado, é a amostra da degradação da humanidade. Obriga-nos a refletir que arma
não protege, arma mata; que ao contrário da frase “povo armado jamais será
escravizado”, o povo armado mata e se mata e lamentavelmente, o homem branco,
cristão e cidadão de bem, mata aqueles que considera inferiores.
Ver o outro em um contexto qualquer
como um ser inferior faz parte da dicotomia social que a racionalidade humana
precisa combater. A desumanização histórica matou e escravizou muitos corpos. Mas
a desumanização moderna, nesse contexto de tecnologização da felicidade, da
objetificação e da coisificação do outro, reduz de forma tão miseravelmente inferior
o outro ser humano, que produz pessoas capazes de matar sem motivos e seguir
sua vida normalmente nos minutos seguintes enquanto mais um pai de família, um
marido e um trabalhador agoniza até a morte... apenas mais um silva que a
estrela não brilha.
Meus sinceros sentimentos a família
de Laudemir e minha mais profunda indignação, que a justiça seja firme.