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quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Os dois brasis e o regresso da humanidade. O emblemático caso do Gari assassinado a sangue frio por um empresário em BH


Nesse texto que agora escrevo, emocionado e indignado, quero comentar sobre o assassinato a sangue frio protagonizado pelo empresário René da Silva Nogueira Junior que fez do Gari Laudemir de Souza Fernandes apenas mais uma vítima do modelo social que o condenou é claro, mas com um símbolo bastante emblemático sobre a dicotomia social sob a qual somos fadados a existir: por um lado, o grupo dos que reivindicam o direito de ser iguais, de ser dignos e de viver; e do outro, o grupo dos que reivindicam o direito de ser superior, de escravizar e de matar, sempre em prejuízo do primeiro grupo.

Quero começar a reflexão partindo de duas frases da canção do MC Bob Rum, “Era só mais um Silva que a estrela não brilha... ele era funkeiro, mas era pai de família” as quais quero reescrever assim: “Era só mais um trabalhador que a estrela não brilha, ele era Gari, mas era pai de família”.  Na música, o personagem sai em apenas mais um domingo de sol, de manhã, pra jogar seu futebol; leva uma rosa pra irmã, dá um beijo nas crianças, promete não demorar e fala pra sua esposa que iria vir pra almoçar. Talvez bem parecido com o caso de Laudemir, pois era pra ser apenas mais uma segunda-feira, de manhã, em sua vida e rotina de trabalho, e me atrevo a imaginar que pelo menos algumas das ações na letra da canção, num contexto familiar, devem ter acontecido, pois, sua esposa e sua filha certamente esperavam vê-lo voltar do trabalho vivo naquele dia.

Trago esse panorama para trazer o foco para nosso modelo cultural que sutilmente validamos todos os dias e todos os dias o tornamos mais cruel e desumano no qual existem os que nasceram vencedores e os que nasceram perdedores... os que são vencedores e os que são perdedores e aqueles que vencem e os que perdem. Infelizmente, nessa dualidade desse modelo social, muitos perdem também a vida.

Nossa sociedade está cheia de casos de Laudemir, um rosto sofrido, um corpo franzino, uma profissão socialmente sem prestígio e uma condição social originária de ser preto, pobre e periférico. Também a sociedade está cheia de René, empresário, bem-sucedido, bem-casado, bonito, corpo malhado e branco, sem esquecer que ele mesmo se define como marido, pai, patriota e, pasmem... cristão.

Este caso e estes dois homens revelam de forma muito emblemática a dualidade social e o condicionamento dos modelos que validamos, pois muitos querem ser o René, muitos querem ter sua beleza, seu corpo, e seu espaço social, pois a imagem dele representa um exemplar daquilo que consideramos “ser alguém na vida”, ser um vencedor, mas pior ainda, ser alguém superior. Por outro lado, olhando para a imagem do Laudemir, o que esse mesmo modelo social nos obriga a ver é a imagem do zé ninguém, do perdedor, e o que é pior ainda,   de alguém inferior. Ninguém tem o Laudemir como uma meta de vida ou como um modelo de sucesso, pois para nosso padrão social, o René representa alguém muito importante e o Laudemir alguém sem importância nenhuma... o fatídico dilema do CEO empresário e o Gari.

Após essa tragédia foi possível o Brasil conhecer não apenas o motivo fútil e sem razão que levou René a assassinar Laudemir, mas também a extensa ficha criminal dele que vai de agressões domésticas contra ex-mulheres a atropelamentos, crimes ainda impunes. Por esses fatos, é necessário afirmar que as contradições das duas imagens desses dois homens devem ganhar um justo significado, pois se retiramos René da sociedade, teremos uma sociedade mais segura, ou seja, ele não fará falta. Mas se retiramos o Laudemir e a categoria de profissionais a que ele pertencia, o que será da sociedade? Olha o colapso que não seria. Por isso, Laudemir, apesar de não ter a graça do modelo dominante, tinha na sua profissão, um relevante serviço social.

O ato de René e o contexto em que ele matou Laudemir escancaram a triste saga social do superior e o inferior. Certamente para René ele estava atirando em um saco de lixo como algo tão insignificante que lhe permitiu, minutos depois, sair com seus cachorros e malhar numa academia porque ele se sente superior e o ser inferior lhe estava atrapalhando. Se formos considerar René que esbanja a imagem de um homem bem-sucedido, é relevante perguntar: que motivos ele tinha para ter ficando tão alterado e não poder esperar alguns instantes enquanto aquele grupo de honrados trabalhadores fazia a limpeza pública? Problemas mentais? Emocionais? Ou de caráter? ... não parece um caráter forjado nesse modelo social em que o vencedor não pode ser confrontado pelo perdedor?

A atitude de René não é um caso isolado, é a amostra da degradação da humanidade. Obriga-nos a refletir que arma não protege, arma mata; que ao contrário da frase “povo armado jamais será escravizado”, o povo armado mata e se mata e lamentavelmente, o homem branco, cristão e cidadão de bem, mata aqueles que considera inferiores.

Ver o outro em um contexto qualquer como um ser inferior faz parte da dicotomia social que a racionalidade humana precisa combater. A desumanização histórica matou e escravizou muitos corpos. Mas a desumanização moderna, nesse contexto de tecnologização da felicidade, da objetificação e da coisificação do outro, reduz de forma tão miseravelmente inferior o outro ser humano, que produz pessoas capazes de matar sem motivos e seguir sua vida normalmente nos minutos seguintes enquanto mais um pai de família, um marido e um trabalhador agoniza até a morte... apenas mais um silva que a estrela não brilha.

Meus sinceros sentimentos a família de Laudemir e minha mais profunda indignação, que a justiça seja firme.